2 In Empoderamento/ Empowerment

Quem precisa de um ano novo?

Eu não sou o Grinch do réveillon, não desprezo o poder de uma virada de folhas no calendário.

Longe disso.

Porém, estou eu aqui nas últimas horas do primeiro dia do ano. Deitada em um colchão no chão do quarto que foi meu por quase 20 anos. Na casa em que cresci e que viu minhas mudanças mais significativas de idade e de vida.

Aqui eu fui ferida e curada de tantas formas ao longo de mais da metade da minha vida. Vi meus pais se casarem na sala no mesmo dia que meu pai recebeu os últimos sacramentos.

Aqui me despedi do meu pai, da minha mãe e de mim.

Dessa casa um dia eu saí feliz e esperançosa para voltar, anos depois, ferida e despedaçada.

Aqui eu fui cuidada, amada e voltei a ser gente, ser eu.

Anos depois tive que sair de casa novamente, já não tão despedaçada, mas triste de um jeito que não consigo descrever. Eu era como uma colcha de retalhos, toda remendada, mas me faltava ainda um pedaço, sabe?

Dessa última vez, eu saí empurrada pela vida que não parou com nenhum dos meus sofrimentos. Não parou com o sofrimento daqueles a quem amo. Nem mesmo quando parecia muito injusto o mundo não parar para se despedir de alguém tão bom que nos deixava.

Então, foi daqui que parti duas vezes para o mundo. Uma vez feliz e por decisão, na outra triste e por obrigação.

Enquanto da primeira vez voltei humilhada, ferida e perdida. Hoje, volto um tanto desconfiada – no bom sentido da palavra. Desconfiada a respeito do que vem pelos dias que chamarei de amanhã. No entanto, não estou curiosa, apenas creio que algo vêm pela frente e não me cabe saber o que é.

É só a vida sendo a vida.

Medito nisso enquanto olho o reflexo da luz pela porta do quarto que é exatamente a mesma imagem de 20 anos atrás. Olhando para a antiga porta, com a luz da janela, fica claro que nada é nem será como antes.

É esse o reflexo que vejo.

Essa casa não é mais meu lar, mesmo sendo ainda abrigo acolhedor. Nem a volta aqui é mais dolorosa do que já foi, pelo contrário, é restauradora.

Por isso, nesse momento não desejaria estar nem na minha casa atual com sua vista de tirar o fôlego, nem em um hotel 5 estrelas.

Eu queria mesmo estar aqui. No chão firme que me acolhe desde meu nascimento, terreno das minhas quedas e fracassos, solo que me faz crescer forte.

Aqui, hoje, volto também para a publicação dos meus pensamentos nesse espaço virtual.

O último texto que publiquei aqui é o registro do processo mais doloroso e amoroso que vivi. Por anos eu não consegui abrir aqui para escrever por não conseguir ver as imagens, fotos e textos. Ainda hoje não consigo, a dor invisível aos olhos alheios é palpável e presente em mim todos os dias. Há momentos em que a tristeza é a única coisa real e em que o fundo do poço tem subsolo com vários andares.

Todos os dias faço um esforço para me lembrar da lição mais importante que minha mãe me ensinou com seu exemplo. Lição que levei a vida toda para entender.

— Tudo passa.

Como tudo faz sentido quando colocado sob essa perspectiva. Como eu queria ter amadurecido para entender isso 10 anos atrás.

Em uma das últimas conversas que tive com minha mãe eu pedi perdão por não ser uma boa filha, não ser boa como ela merecia que fosse. A resposta dela sorrindo pra mim e beijando minha cabeça no seu colo: “todo filho que Jesus manda é bom!”

Essa frase é uma espada na minha alma, mas lembar dela me dá força, afinal, omnia in bonun é isso.

Não tenho como descrever o que sinto aqui, agora, olhando para a luz que entra pela porta. Parece que vou vê-la saindo do quarto, abrindo uma frestinha e me falando “não vai dormir não, baixinha?”.

Fecho os olhos e sinto a presença da esperança que ela sempre trouxe em si, mesmo nos piores momentos.

Só me resta registrar aqui o pouco do que consegui organizar dos pensamentos para eternizá-los.

Tudo que sei de verdadeiro eu aprendi em casa, vivendo com minha mãe e seu exemplo. Com meu pai também. Tudo que vivo, creio e se mostra real e eterno eu aprendi observando a vida real da minha mãe e meu pai. Vivendo com eles enquanto passaram pelos sofrimentos e alegrias da vida.

Minha mãe, em especial, viveu sofrimentos indescritíveis com simplicidade, sabendo que tudo passa e só. Sem teologia, sem ciência, sem estudo, sem milhões na conta, sem nada que pudesse entrar para a história.

Quem precisa de um ano novo quando se tem consciência de que a vida é isso?

Ainda que eu estivesse em outra situação o meu momento interior só faria sentido voltando aqui, para o que é eterno.

Aqui, num colchão emprestado, no chão, me sentindo em casa. Só aqui a saudade, a dor, a parte que me faz falta transborda em um amor maior e mais forte, eterno.

Voltar aqui no lugar onde cresci e vivi as maiores transformações da vida, tem um significado único.

É tão simbólico quanto forte.

Enquanto escrevo me vem um antigo ditado a mente:

“Raízes profundas geram árvores fortes.”

É isso, quem precisa de um ano novo quando se tem raízes de onde se pode sempre recomeçar mais forte?

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2 Comments

  • Reply
    Luana Fagundes Gonzalez
    janeiro 3, 2023 at 10:23 pm

    Obrigada por abrir um pouquinho do teu coração aqui. As tuas palavras sempre me tocam de uma maneira muito profunda, Lis. A simplicidade na dor que tu relata sobre a tua mãezinha é uma inspiração e me dá força. A tua caminhada, também. Que Deus te abençoe e guarde os teus pais na eternidade com Ele. Rezarei por vocês. ♡

    • Reply
      Lis
      janeiro 5, 2023 at 4:50 pm

      Obrigada por vir conversar aqui, Luana.
      Sinto que compartilhar o luto deu outra forma para ele.
      Espero que reativando meu blog eu possa ajudar a mim e outros a ressignificar a vida real.

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